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56 itens encontrados para ""

  • Era uma vez... um parto feliz

    O medo do vírus. De não ter o pai presente. Das induções. São mulheres a quem a pandemia ditou um palco longe de holofotes para parir. Mães de primeira viagem, de segunda, de quarta, que escolheram ter os bebés no domicílio. A procura aumentou e a opção divide a sociedade entre julgamentos e aplausos. Por entre mitos e ideias feitas a certeza é só uma: uma nova história de vida deve sempre começar com “Era uma vez um parto feliz”. Grande Reportagem realizada no âmbito da cadeira de Rádio do 3ºano

  • COP26: O que é e o que prometeu fazer?

    A COP26 aconteceu no final de 2021 e moveu jovens e ativistas. Os líderes de diversos países reuniram-se na 26.ª edição do evento das Nações Unidas, em Glasgow, na Escócia. Na ilustração seguinte, pode ver quais os objetivos traçados para os próximos anos e os planos delineados para assegurar uma Terra melhor para as gerações futuras. Artigo escrito por: Mafalda Barbosa

  • Editorial: E assim nasce mais um…

    A grande questão é como, num dos momentos mais vulneráveis e naturais da vida humana, alguns profissionais de saúde conseguem despir-se de qualquer tipo de sensibilidade perante uma nudez tão fragilizada. Grande parte dos problemas sociais em Portugal provêm dos ideais retrógrados intrínsecos na nossa sociedade. Em pleno século XXI, os portugueses ainda acreditam que o discurso dos profissionais de saúde, nomeadamente dos médicos, é inquestionável. Tal deve-se, sobretudo, ao pensamento ignorante de que a medicina é um curso somente para seres extraordinários e, portanto, tudo o que fazem e/ou dizem é incontestável. O prefácio é simples: eles sabem o que estão a fazer. O receio dos cidadãos em contestar e dizer que “não” aos profissionais de saúde é compreensível. Todos os dias há milhares de vidas que dependem deles. Ao longo da sua carreira deparam-se com uma enchente de doenças numa maré de pessoas. É legítimo questionarmo-nos se este ofício acaba por os tornar indiferentes a todos aqueles que passam pelas suas mãos. Na realidade, o indivíduo comum não deixa de ser só mais um sopro na efemeridade da vida. Recentemente, começaram a surgir vários testemunhos de mulheres sobre a violência obstétrica a que foram sujeitas, nomeadamente, durante a gravidez e o parto. Destaca-se a violência física, com recurso à força, acompanhada de um conjunto de intervenções obsoletas, originais de uma sociedade machista e patriarcal. É necessário realçar ainda a forte agressão psicológica que se faz sentir, com uso de linguagem rude, ameaças, omissão de informação e a ausência de consentimento exposta pelas vítimas. A grande questão é como, num dos momentos mais vulneráveis e naturais da vida humana, alguns profissionais de saúde conseguem despir-se de qualquer tipo de sensibilidade perante uma nudez tão fragilizada. Enquanto cidadãos é fulcral interrogarmos os médicos, de modo a compreender a razão que está por detrás destas ações. O número de testemunhos vai aumentando, porém, a Ordem dos Médicos continua a negar a violência obstétrica em Portugal – apesar de alguns já terem confirmado a sua ocorrência – considerando que é um problema de Terceiro Mundo. O peso da mentira ou está nos ombros de todas as mulheres que decidiram contar a sua história ou na Ordem dos Médicos que não quer manchar a sua imagem. Ainda há muito para discutir sobre esta luta que ganha cada vez mais visibilidade. As consequências que esta violência provoca são incontornáveis na vida da vítima, causa uma cicatriz que perfura o corpo e a alma que esconde, com vergonha, um grito ensurdecedor. O pilar que sustenta a relação mãe e filho estremece a partir da base, embalando a família num sofrimento atroz. Em termos de jurisprudência, o conceito de Violência Obstétrica não é reconhecido, não existindo assim condenações em Portugal. Este ambiente abusivo é alimentado pelo patriarcado e também pelos próprios profissionais de saúde. Sentem a responsabilidade de não poderem falhar para com os portugueses, ao ponto de se recusarem a admitir a existência destas práticas e preferirem fazer dos testemunhos um enorme leque de mentiras. É imperativo e urgente denunciar este problema que a Ordem dos Médicos tenta exaustivamente encobrir. Só se afoga na violência quem não sabe nadar a favor da corrente de humanidade. Ser honesto num mar de futilidade é algo audaz e permite navegar para melhores portos. Por Jornal Invicto

  • «NA TUA IDADE, EU JÁ»

    É como um jogo para alguns, ganha aquele que deixar o filho em pior estado emocional. Ainda não descobri o porquê de o fazerem. Acho deveras engraçado como há pessoas que ainda acreditam, genuinamente, que não existe tal coisa como a toxicidade parental, vamos assim chamar-lhe. Acredito que devemos uma salva de palmas para todos aqueles que se viram, novamente, encurralados nas suas próprias casas na altura do confinamento. Não me orgulho em dizer que conheço muitos jovens que lidam com este tipo de problema todos os dias. Uns quantos viveram e a quantidade de outros que ainda vivem o real inferno na terra. Este tipo de toxidade, vinda dos próprios pais, tem demasiadas vertentes para que as possa apresentar num curto texto. De forma resumida, este comportamento impróprio dos familiares vem da sua mentalidade ou sobretudo do seu passado, o ambiente em que foram criados, se receberam ou não o dito carinho e atenção quando eram crianças, neste caso, dos nossos avós. Falo por todos quando digo que temos consciência que os tempos eram diferentes, mas já não estamos todos fartos deste discurso sistemático? “Na tua idade, eu já”. É frustrante ouvir sempre a mesma coisa – contudo, prefiro dizer que é engraçado, parece que não se cansam. Friso que estou a tornar este tema mais banal do que realmente é, mas defendo firmemente que ninguém sabe o que é ter pais tóxicos se não os tiver – nem que expliquem ao amigo mais chegado, de forma pormenorizada, certos episódios que vivenciam. Quando o fazem e deixam sair um ou outro insulto da boca levam com um “Estás a exagerar” – ou, então, ouvem o comentário mais comum: “Os teus pais não parecem ser nada assim”. Para as criaturas que pronunciam estas palavras ou algumas parecidas: não é suposto os pais transparecerem a toxicidade para os que estão de fora. O pior não é de todo as pessoas não terem noção do quão mal alguns pais deixam os filhos mentalmente, é sim o facto deles próprios não terem consciência disso e fazerem cada vez pior. É como um jogo para alguns, ganha aquele que deixar o filho em pior estado emocional. Ainda não descobri o porquê de o fazerem. Na minha cabeça, estas crianças e jovens, quando formarem a própria família, sem dúvida alguma, quererão ser melhores – aprenderam com os erros dos pais. Mas escondido neste grande desejo há um receio ainda maior, que é tornarem-se, inevitavelmente, iguais ou até mesmo serem piores. Não me é possível exemplificar de que modo os pais podem ser tóxicos para os próprios filhos, até porque são várias as maneiras de o serem, umas mais notórias que outras. É triste afirmar que muitos jovens apenas se apercebem dessa toxicidade existente anos mais tarde – devido ao facto de terem convivido desde pequenos e terem crescido nesse específico ambiente, serem reprimidos torna-se algo normal e aceitável, quase banal. Realço que o foco é na toxicidade para com os filhos, não entre o próprio casal, que, infelizmente, também é bastante frequente. Os pais, nestes casos, têm tendência a cortar as asas aos filhos e a culpabilizá-los pelos problemas que passam, por erros que cometem e que nada têm a ver com o filho, até pelos problemas financeiros – imaginem colocar essa pressão e culpa numa criança de 12 anos. Infernizam a mente destes miúdos, igualmente com insultos que rapidamente se confundem com alcunhas. Pergunto-me como é que é falhar a este nível como pais. Para quem está de fora achará que é “fazer uma tempestade num copo de água”, mas não são eles que passam os dias a levar com berros na cara, com constantes ameaças, com o “não és nada”, “não fazes nada”, “és um inútil”. Nem são eles que ficam em negação devido à vergonha que sentem ao apenas pensar em expor o que passam em casa – nem estou a ser violenta com as palavras para não vos assustar, chamo de privilegiado aquele que nunca passou por tal absurdo. Porém, considero que é impossível fazer a descrição destes momentos por meras palavras. A toxicidade parental é um assunto deveras sensível e regularmente ignorado na nossa sociedade – como muitos diriam “não nos devemos meter nos assuntos dos outros” – e, por isso, espero ansiosamente pelo dia em que comecemos a dar a merecida importância à saúde mental de todos, mas principalmente à dos mais jovens. Eles que aguardam os 18 anos, pela pequena, mas tão grande independência – os quantos que se matriculam em universidades da outra ponta do país, para estarem o mais longe possível do ninho que os atormentou desde cedo. Porém, até ao reconhecimento total deste mal, continuemos a fingir que é apenas uma situação engraçada. Artigo escrito por: Inês Cristina Silva

  • Invicto - Edição Impressa

    Edição dia 10 de janeiro de 2022. A violência obstétrica é a Grande Reportagem para ler nesta edição do jornal Invicto. De salientar a entrevista de personalidade a Afonso Reis Cabral, as eleições legislativas de 2022 e a entrevista a Hélder Nunes.

  • Suplemento Ponte A Ponte - Edição Impressa

    Esta edição do Jornal Invicto inclui o suplemento Ponte A Ponte. Trata-se de um conjunto de textos escritos por habitantes e visitantes da cidade do Porto, hipnotizados pela magia da sua gente.

  • O caminho para a defesa

    Segundo o decreto-lei 14/2015, o utente dos serviços de saúde tem uma série de direitos e deveres pelo qual é protegido. Por exemplo, no Capítulo II, o art.3º defende o consentimento ou recusa da pessoa “[...]em qualquer momento da prestação dos cuidados [...]”, e o art.7º defende o direito à informação, que “[...] deve ser transmitida de forma acessível, objetiva, completa e inteligível”. Também em 2019 foi lançado outro decreto-lei que promove a proteção da saúde como um direito da sociedade. A advogada acredita que o facto desta lei ser tão recente, faz com que a maioria das mulheres não conheça os seus próprios direitos, e a maior parte dos médicos e enfermeiros não tenham conhecimento dos mesmos. Apesar desta problemática ainda ser um conceito prematuro em Portugal, há maneiras de o combater. A advogada refere que há possibilidade de fazer um pedido de indemnização, apesar de haver “uma ligeira diferença entre o parto ter ocorrido num hospital público ou num hospital privado”, mas o prazo varia e continua a ser muito curto. No entanto, Mia Negrão revela que “é um dever cívico fazerem reclamação ao hospital”, porque é importante informar a instituição das fases negativas e positivas de cada parto. Em Portugal, não existem condenações por violência obstétrica. A realidade é que a prática de maus-tratos, quer psicológicos, verbais ou físicos, acabam por recair noutras zonas do código penal, como “na ofensa à integridade física, ameaça, coação, injúria”, nomeia Vânia Simões. É difícil delinear as formas para combater este problema que está agora a ganhar extrema relevância, em Portugal. Compreende-se, no entanto, que criminalizar esta prática não é a solução imediata, nem como plano de fundo. “Não sei se o melhor caminho é criminalizar a violência obstétrica”, conclui Mia Negrão. O número de queixas tem vindo a crescer, movendo cada vez mais mulheres a manifestarem-se publicamente de norte a sul do país. Apesar de bastante comum, a violência obstétrica continua a ser uma forma de violência pouco discutida. A sociedade continua a considerar que a mulher está, só por ser mulher, sujeita a diferentes tipos de dores, desde a primeira menstruação ao desequilíbrio hormonal da menopausa. Consequentemente, aceita desde cedo a ideia de que o parto será uma experiência dolorosa e acaba por considerar normal o modo como é tratada. Podemos ainda acrescentar a ideia de que acredita que deve ser submissa aos demais, o que acaba por ter repercussões quando se depara com alguém cujo poder é, supostamente, superior. Neste caso a relação profissionais de saúde-utentes. A evolução de boas condições de parto hospitalar levou a que a mulher perdesse a sua autonomia, então o especialista tira a bata branca e veste a toga em nome do bebé. Não é altura de humanizar o parto, já é tempo de humanizar a mulher no parto. Mulheres manifestam-se contra a violência obstétrica Dezenas de mulheres saíram à rua na cidade do Porto, a 6 de novembro, para provar que a violência obstétrica existe em Portugal. Sentem-se humilhadas, maltratadas e lutam por melhores condições e por um parto humanizado. O movimento cívico surgiu nas redes sociais e contou com o apoio da Liga Feminista do Porto, que disponibilizou cartazes e uma chance às vítimas de se fazerem ouvir. “Não há outra resposta senão apoiar esta organização e trazer tudo o que nós podemos contribuir porque as mulheres não vão ser ignoradas e não se vão calar. O movimento já começou e agora não vai estagnar”, salienta Lúcia Pestana, vice presidente da Liga Feminista do Porto. Testemunhos de mães de todo o país vão ser entregues à Ordem dos Médicos. Os manifestantes fizeram-se ouvir em cidades como o Porto, Coimbra, Lisboa e Funchal. Prometem que a luta não acaba aqui. Voltar ao início

  • Dentro das paredes hospitalares

    Parece unânime que o parto deva ser visto como um procedimento fisiológico. Sónia Barbosa defende que a gravidez e, em particular, o parto devem ter menor intervenção humana. Reforça que se deve recorrer às manobras “só para casos muito específicos, em que possa ser uma mais-valia”. Os media têm alertado para a necessidade de “humanizar” um dos momentos mais naturais na vida da mulher, mas crê-se que o verbo não está a ser bem empregue. O desenvolvimento das práticas médicas e da tecnologia contribuiu para a descrença de que a mulher tem capacidade suficiente para dar à luz de forma independente. “Deixaram de acreditar nesta natureza fisiológica do parto”, acrescenta ainda. A enfermeira Sónia explica que “quando as mulheres pedem um parto humanizado, estão acima de tudo a pedir um parto com respeito”. Por outro lado, a face da moeda muda quando os profissionais de saúde falam deste tipo de parto. Rui Miguelote, médico especialista em Obstetrícia, diz que o desejo da comunidade médica é que as parturientes estejam “mais monitorizadas, tanto a parte materna como a parte neonatal”. O médico afirma que, desde de 1960, a taxa de mortalidade materna e neonatal tem vindo a diminuir drasticamente, sendo que, hoje em dia, é até vinte vezes inferior. Acredita que esta “revolução da mortalidade” conduziu a que os profissionais de saúde insistissem na prática de manobras que permitissem controlar cada vez mais este processo. Rui Miguelote consegue, no entanto, admitir que muitas “intervenções estavam, se calhar, a desumanizar ou a tornar uma coisa fisiológica numa coisa, excessivamente, medicalizada”. Existe uma confiança plena que se injeta nos médicos e acaba por despir as mulheres da crença de que se podem impor ou até mesmo escolher a maneira como querem ter o seu bebé. “Acreditam que não conseguem fazer isto [o parto] sozinhas e que precisam dos médicos: eles surgem aqui como salvadores”, afirma Vânia Simões. É um problema sistémico, que tem origem nas raízes de uma sociedade que tende a ver os profissionais de saúde como seres omnipotentes. Contudo, a enfermeira Sónia admite que em obstetrícia “os profissionais intitulam-se como defensores do bebé, com a justificação que estão a salvar a vida dele, e atropelam o direito à autonomia da mulher. Isto legalmente não pode acontecer, mas é a realidade”. A falta de liberdade e autonomia advém desta conceção ilusória e difícil de combater. “Quando a mulher é admitida no hospital, é logo sujeita a uma cascata de procedimentos em que ela não tem liberdade para decidir sobre o seu parto e as suas escolhas reprodutivas”, reconhece Vânia. A realidade é que, apesar de estarmos no século XXI, a mulher continua a ter um papel submisso e, para Sónia, na obstetrícia, a dificuldade deve-se ao facto de estar "perante alguém com uma posição de poder”. A vulnerabilidade da mulher durante o trabalho de parto é também propícia a que a mesma não consiga (ou possa) tomar decisões. A mesma reconhece que esta atitude não vem só dos profissionais de saúde, mas também dos próprios familiares, companheiros e amigos, que encorajam a que a parturiente coloque a opinião do médico à frente das suas próprias convicções. O obstetra Rui Miguelote reconhece esta realidade, confessando que os médicos acabam “por limitar muito as liberdades, nomeadamente a movimentação durante o trabalho de parto, e intervir bastante para prevenir várias complicações que, se calhar, valeria a pena arriscar ou partilhar com as parturientes”. Uma das lacunas mais claras na obstetrícia é a omissão de informação. “São parcos na informação, apenas transmitimos aquilo que nós achamos bem.” No nosso país, os principais casos de violência obstétrica estão estreitamente relacionados com a “falta de consentimento informado”, reconhece a advogada Mia Negrão. Quando as mulheres dão entrada no hospital, é-lhes fornecido um formulário que descreve as possíveis séries de manobras a que podem ser sujeitas, como a utilização de fórceps (um instrumento para extrair o bebé, que pode ser perigoso para a mãe e para o recém-nascido, utilizado em casos extremos), a realização de episiotomia ou cesariana e a utilização de ventosas. A realidade é que este formulário não oferece às grávidas uma explicação uniforme e suficiente daquilo que pode vir a acontecer, ou mesmo da maneira que as pode afetar futuramente. Muitas das mulheres que têm vindo a manifestar sobre esta problemática e a denunciar os seus próprios casos, acreditam que existe um abuso de poder por parte dos profissionais. Sónia Barbosa admite que a explicação dos procedimentos aos pacientes é fulcral, mas que é raro acontecer na obstetrícia. “Em Portugal, decidimos que era melhor induzir o parto às quarenta e uma semanas, mas não explicamos à mulher o porquê. A ciência não é evidente quanto a essa recomendação e não lhe damos oportunidade de recusar”, acrescenta. A obstetra Alexandrina exemplifica o caso da episiotomia como um dos sistemas mais controversos, em que já é sabido que “nem sempre tem benefícios, mas aplica-se na mesma e é o que na academia se continua a ensinar, como uma prática mais regular”. Mia Negrão admite que existe um abuso de poder que não parece ser tão significativo noutras áreas de saúde, mas que “nesta em específico é muito mais preocupante, na medida em que não estamos a falar de pessoas doentes, estamos a falar de pessoas grávidas, de processos naturais e fisiológicos”. Aos olhos da obstetra Alexandrina, os médicos e enfermeiros portugueses recusam-se a aceitar que este problema é uma realidade. É difícil reconhecer, enquanto profissionais de saúde, que estão a exercer violência sobre pessoas, mesmo que inconscientemente: “não querem reconhecer que estão a causar dano, nomeadamente algo que possa ter um impacto tão negativo na sociedade e, no fundo, possa ser muito mal visto”. Tanto Alexandrina como Sónia acreditam que, em Portugal, a mulher informada pode ser marginalizada, uma vez que vai entrar em confronto direto com o profissional. É gerado um ambiente de desconfiança e “parte-se do princípio que as coisas não vão correr bem”. É fundamental uma comunicação saudável para que se compreenda os termos em que se deve agir. Sónia Barbosa crê que “um ponto primordial para a mudança” é a formação académica. Ao longo dos anos, o ensino “tem vindo a preparar os profissionais para aquilo que é a realidade prática e não para aquilo que devia ser feito”, também com receio das repercussões que os alunos possam sentir “se tentarem fazer diferente”. “É uma mudança lenta e falta um pouco de coragem para abanar esta estrutura.” Não é só além continentes que se sente diferença na prestação de cuidados de saúde. Nos países desenvolvidos também se encontram dissemelhanças inquietantes. Ana, uma das testemunhas, acabou o curso de enfermagem em 2015 e mudou-se logo a seguir para Inglaterra. Sentiu diferenças no serviço de saúde e no modo como os profissionais trabalham. Ao início, achava muito estranho que os seus pacientes lhe questionassem o porquê de tudo o que fazia. “As minhas intervenções vão ter consequências no corpo e na saúde deles, por isso têm todo o direito a perguntar que outras opções há”, alude. O envolvimento com os utentes torna mais fácil a adesão dos mesmos ao tratamento, o que contribui para melhores resultados na saúde. Outra diferença em Inglaterra é a grande aposta na formação contínua dos profissionais. Trata-se de um processo construtivo, caso Ana sentisse “que não tinha tanto conhecimento numa determinada área o hospital facultava uma formação”. Em Portugal, Ana afirma que não há muita abertura: “tenho que fingir que sei tudo, errar é visto quase como uma fraqueza”. “É isso que também faz muita falta no sistema de saúde português: apoiar os profissionais para serem melhores e para se atualizarem”, conclui. “Nós temos que começar pelo nível da responsabilidade civil, com a sensibilização e a prevenção dos profissionais de saúde destas práticas”, afirma a colaboradora da APDMG. Vânia ainda acrescenta que é crucial ter o apoio dos profissionais de saúde. “Isto é uma luta contra todo um sistema.” Voltar ao início

  • Era uma vez… um parto infeliz

    O número de mulheres que já passaram por episódios de violência obstétrica em Portugal é avassalador. Através de associações que lutam ao lado delas e de posts nas redes sociais, diariamente são partilhados novos testemunhos de experiências desconfortáveis que, em certos casos, parecem ser uma “sessão de tortura” traumática. Ana Em 2019, Ana vivia e trabalhava em Inglaterra, mas às 33 semanas de gravidez decidiu que era em Portugal que queria dar à luz. Foi seguida no hospital privado e desde cedo percebeu que a médica que a acompanhava queria levá-la numa direção específica, “começou logo a falar de marcar uma cesariana porque o bebé não tinha virado”. Por ser enfermeira, “ter algum conhecimento nesta fase foi bom”, pois ajudou-a a defender-se de alguns comportamentos da profissional de saúde. No entanto, a médica continuou a insistir na indução do parto. “Quando deixar de sentir a sua filha e ela morrer venha ao hospital.” Foram as palavras que Ana ouviu da médica. Pela primeira vez sentiu medo e uma sensação de que o seu corpo não estaria a fazer o trabalho correto e que já estaria a falhar, “foi com essa sombra que fui para o meu parto”. “É difícil tomar uma decisão, mantermo-nos firmes quando vemos que a vida do nosso filho está em risco ou estaria em risco e aceitei induzir às 39 semanas”, disse. Depois de um CTG (exame complementar de diagnóstico para avaliar a frequência cardíaca fetal), Ana foi levada para observação. Já no gabinete, o médico realizou um toque, que Ana, estando em posição ginecológica, consentiu. No entanto, o profissional voltou a agarrar a sua perna e começou a introduzir o braço. “Foi a maior dor que senti na minha vida”. Ana gritava e tentava fugir na maca para trás. “Agarrou-me com força na barriga mesmo onde a minha filha estava. Fiquei estática porque senti que ela estava em perigo. Até hoje não sei o que é que ele estava a tentar fazer”, conta. “Tive muita dificuldade em voltar a iniciar a relação sexual. Olhava para a minha filha e sentia-me violada.” Ana teve sonhos recorrentes da situação do médico, durante mais de um ano “acordava toda transpirada e a tremer”. “Culpei-me muito tempo por não ter conseguido defendê-la e por não me ter conseguido defender”, acrescenta. Ana admite que o seu marido se sentiu incapaz, por não conseguir proteger a mulher e a filha. Já no bloco de partos, as contrações ficavam cada vez mais fortes. O corpo de Ana pedia para ela se mexer, mas as enfermeiras não o permitiam e incentivaram a epidural para acalmar as dores. “Ficar na cama sem epidural e com contrações foi a coisa mais difícil que fiz na vida”, assume. “Pensava que já tinhas percebido, se tu te mexes a tua filha morre, por isso está quietinha”. Mais uma vez o pedido de Ana para se mexer foi recusado. “Estive na cama presa, não tinha amarras, mas tinha cordas psicológicas. Passei a noite inteira a pensar que se me mexesse ela morria”, explica. Todos os pedidos que fazia eram com medo, pois podiam ser negados ou gozados ou não ter resposta. “Não me explicavam nada e ignoravam qualquer pedido. Falavam entre elas e nunca diretamente para mim. Enquanto pessoa não existia”, lamenta. Ana conta um exemplo, na hora do parto, em que se sentiu humilhada: Enquanto enfermeira, a testemunha sentiu-se “muito traída” pelos seus colegas. “Só se passa por esta experiência uma vez” e para Ana era importante que isso tivesse sido respeitado. Queria que a sua filha tivesse passado por um início de vida mais pacífico. Amanda Amanda Pereira recorda que o parto da sua filha, em março de 2020, foi um processo negativo. A mãe deu entrada no hospital no dia 11, depois de ter rebentado as águas. Passou a noite inteira em observação e só no dia seguinte é que a equipa médica começou a indução do parto. Sem qualquer tipo de explicação, os profissionais de saúde pediram-lhe para abrir as pernas e, em três momentos diferentes, colocaram-lhe comprimidos. “Meu marido falou que era um punhado”, relata. No entanto, a medicação não teve o efeito pretendido, então, a médica iniciou um processo que Amanda caracteriza como “uma sessão de tortura”: “colocou a mão dentro de mim e eu sentia os dedos dela batendo nos meus ossos por dentro. Eu gemia, eu berrava e ela me segurava na pelve, para ficar quieta”. Só muito mais tarde e por iniciativa própria, Amanda descobriu que a intervenção à qual foi sujeita é conhecida por “toque maldoso”, ou seja, o descolamento de membranas, que “iniciou uma cascata de intervenções e um parto totalmente doloroso”. De seguida, Amanda começou a sentir dores “muito descontroladas e fortes” durante mais de 10 horas, até ao momento do nascimento da filha. As contrações sem ritmo são um efeito colateral do “toque maldoso”. Amanda acabou por receber a anestesia, mas a profissional de saúde disse-lhe que a tatuagem que tinha nas costas provavelmente foi mais dolorosa do que o trabalho de parto. A vítima apenas respondeu que a tatuagem doeu menos e que faria mais, mas o parto talvez não. Os comentários não ficaram por aí. A anestesista também perguntou: “mas não és brasileira? Vocês não dizem ser um povo alegre? Onde está a tua alegria agora?”. Amanda, desta vez, não conseguiu responder de tão nervosa que estava, pois a sua vida e a da filha estavam “nas mãos dela”. Aliado às dores, Amanda confessa que perdeu as contas de quantas pessoas lhe tocaram para a examinar: “Eu me senti realmente como se fosse uma égua, que estava ali aberta e um chamava os outros.” Depois, Amanda começou a desesperar, por falta de ar: “se eu não estou respirando bem, a minha filha também não está”. A atitude das médicas foi de culpabilização, dizendo: “não fez o curso de preparação para o parto? Não sabe como é que tem de fazer a respiração?”. Cuidados que Amanda tinha tido. Após um tempo, Amanda voltou a ficar sozinha no bloco e desabafou com o marido que “aquele não era mais um momento feliz, simplesmente queria que aquilo acabasse”. A prioridade era ter a filha no colo com saúde. O facto de serem brasileiros e de terem sido alvo de piadas e comentários xenófobos, também os deixou mais perturbados. Foi então que a equipa médica retomou ao bloco e iniciou a manobra de Kristeller. Amanda tinha conhecimento prévio da intervenção que lhe estava a ser aplicada, por isso tentou tirar a profissional de saúde de cima dela, mas não tinha forças para tal. A mãe culpabilizou-se por “não ter conseguido fazer nada”, um pensamento comum nas vítimas de qualquer tipo de violência. Por fim, a obstetra acabou por lhe fazer uma episiotomia, que consiste num corte na vagina e no períneo). Amanda não sentiu e só descobriu mais tarde, quando lhe estavam a coser. Ao dar os pontos, a médica colocou-lhe uma compressa e pediu para ser ela a relembrá-la de a retirar. Entretanto, foram as enfermeiras que se lembraram disso e removeram a compressa. Amanda recorda a expressão de ambas, face ao sucedido, “como se não fosse a primeira vez”. A recém-mãe acredita que se tivesse passado a noite inteira com a compressa, “muito provavelmente teria infecionado e teria acontecido o pior”. “É muito triste que uma mulher tenha que passar por isso, no dia que deveria ser o mais lindo da nossa vida. A sociedade vai nos empurrando para a maternidade, mas quando chega o dia você não sente felicidade”, partilha comovida. Catarina O caso de Catarina é ligeiramente diferente dos anteriores. A mãe de 25 anos queixa-se da falta de consentimento informado por parte da equipa médica, “o diagnóstico falhou muitas vezes.” A jovem acusa ter sido sujeita à manobra de Kristeller, sem sequer lhe perguntarem ou justificarem o porquê de a terem feito. Com base nas conversas que teve com a sua advogada, que tem formação sobre a área, e na leitura dos documentos do hospital, a mãe desconfia que também lhe fizeram o descolamento de membranas, para induzir o trabalho de parto, mas nunca obteve nenhuma resposta a confirmar ou a desmentir. As desconfianças devem-se àquilo que sentiu durante o processo. Catarina não sabe quando é que as águas rebentaram, tinha contrações irregulares, sentia dores desmedidas, chegou a sangrar e teve de usar fralda, por não se conseguir levantar. Outra das experiências ocorreu nas primeiras horas de pós-parto. Apesar das dores fortes que sentia, a equipa médica recusou dar-lhe epidural. “Quase obrigaram o namorado a escolher entre pegar no filho ou ajudar a namorada.” Mais tarde, no verão, numa consulta no centro de saúde, procurou saber junto a um médico onde conseguia obter mais informação sobre o trabalho de parto. Contudo, a resposta que recebeu foi que, como o bebé estava saudável, ela não se deveria focar nisso. Face à falta de apoio dos profissionais de saúde, Catarina foi a uma consulta jurídica, para perceber o que deveria fazer e começou a pesquisar e a envolver-se mais com o tema da violência obstétrica, através da internet e das redes sociais. Patrícia A última testemunha, Patrícia, considera não ter sido vítima de violência obstétrica “por sorte”, pois fez de tudo para fugir ao processo. No entanto, passou por episódios ao longo da gravidez e no pós-parto que a afetaram negativamente. “Na primeira consulta vamos com uns coraçõezinhos todos à volta e, de repente, levamos logo um banho de realidade.” Quando soube que estava grávida, Patrícia ficou assustada e ansiosa, pois tinha estado de viagem e a tomar antibióticos. Queria saber se estava tudo bem com o bebé, então ligou para uma clínica do Porto e pediu a primeira consulta disponível. No consultório a médica, séria, disse “o que é que quer que eu faça? Quer que eu olhe para a sua cara e diga que está grávida? Tem um teste que diz que está grávida, portanto está, não há nada a fazer”. Foi aí o primeiro confronto do casal com a realidade. Depois, Patrícia começou a perceber que, no seguimento normal com o obstetra, era tudo muito protocolado. “Nós temos que entrar e seguir aquele único caminho e ninguém nos dá propriamente opções”, conta. Na altura, Patrícia pesquisou e encontrou a clínica Uterus, no Porto, que tem uma abordagem diferente à saúde da mulher. “Encontrei uma realidade completamente diferente, como partos domiciliários, partos não medicalizados, ou seja, coisas muito naturais”, acrescentando que não era um caminho bem aceite. Mas a gravidez foi um processo altamente doloroso, ainda mais agravado com o confinamento, onde Patrícia tinha menos oportunidades de falar com outras pessoas e de ver outras experiências. Inclusive, nessa altura, Patrícia ponderou o parto domiciliário, pelo medo que ganhou em ir ao hospital. O filho Simão nasceu no hospital da Póvoa de Varzim. Patrícia tem consciência que teve uma experiência incrível de parto, mas “o resto foi horrível”. Depois de nascer, Simão teve de ser internado. Hoje com dezassete meses, o casal continua sem compreender o porquê do internamento. “Cheguei a fazer queixa no hospital e nunca ninguém me explicou exatamente o que é que aconteceu. Só consigo encontrar medo do lado de lá”, admite. Para além disso, fizeram questão de encher o casal de culpas: ou era porque o bebé já estava em sofrimento no parto; ou porque o casal queria determinados procedimentos; ou porque tinham cortado o cordão umbilical mais tarde. “Mas tiveram lá profissionais connosco. No limite, se tivéssemos a pedir qualquer coisa que não dava para fazer, tinham que ter sido eles a dizer”, reitera. Relativamente à queixa, o casal não obteve nenhuma resposta formal do hospital. “Não sei dizer até que ponto fomos vítimas de alguma má prática, de incompetência ou negligência, porque até hoje não percebo o que aconteceu”, remata. Um outro comentário desagradável foi feito três ou quatro dias depois do parto. No centro de saúde, Simão ia tomar a vacina contra a tuberculose (BCG). O enfermeiro que estava a dar as vacinas olhou para Patrícia e comentou “Ainda não teve o bebé? Essa barriga está horrível! Isso não tem jeito nenhum! Vai ter que fazer alguma coisa para tirar isso!”. “Fiquei completamente destruída”, confessa a mãe. “Deve estar toda arrebentada aí embaixo.” Por o bebé ter nascido com mais de 4kg, o enfermeiro questionou se foi por cesariana, ao que Patrícia respondeu que foi parto normal. “Deve estar toda arrebentada aí embaixo”, comentou o enfermeiro. “No momento aquilo é altamente destrutivo, porque a pessoa está sensível. É a falta de humanidade”, exprime a recém-mãe. Alguns dos episódios que aconteceram ajudaram-na a perceber que fez o caminho certo ao ter investido no estudo. “Mas isso ainda me revolta mais, porque devíamos ter todos os mesmos direitos de acesso à informação, sem precisarmos de procurar”, acrescenta. A lacuna no seio familiar São várias as mulheres que demoram a associar o nome “violência obstétrica” à sua experiência de parto. “Foi um processo solitário”, é assim que Patrícia relembra o seu pós-parto, não encontrou nem na sociedade, amigos e família, o suporte onde se apoiar. Ana sublinha que foi um processo difícil e longo até conseguir pedir ajuda. Sentia uma necessidade enorme de desabafar abertamente sobre o parto. Foi aí que começou a procurar grupos de mães online que passaram pelo mesmo e percebeu que isto acontecia com mais mulheres. Catarina partilhou a sua história com o seu círculo mais próximo e as reações divergiram. No seio familiar, a jovem admite que a sua mãe “foi claramente vítima de violência obstétrica e de uma forma pior” e que a irmã também passou por experiências menos positivas. Por isso, ainda lhes custa remexer o assunto, apesar de acreditarem na história. Porém, como Catarina não foi “rasgada ou cortada” sente uma certa desvalorização, tornando “tudo mais difícil de lidar e de explicar, porque parece que não há uma conexão óbvia. Isto deixa-nos à margem de muita coisa”. Um corte ainda mais profundo A violência obstétrica não afeta a vítima única e exclusivamente durante a altura em que estes atos são exercidos, também deixa mazelas psicológicas e/ou físicas à posteriori. Uma situação de violência, que pode ser humilhante para a mulher, prejudica a forma como ela lida com o seu corpo e a confiança que deposita nos profissionais de saúde. “Neste momento tenho muita dificuldade em fazer um exame ginecológico, só o faço com alguém comigo. Demorei muito tempo a deixar que me tocassem outra vez numa situação de saúde”, admite. Nos dias de hoje, Ana recorre à psicoterapia para lutar contra o problema. Amanda caracterizou o parto como “uma tortura que só queria que acabasse” e os meses seguintes também não foram fáceis: “ouso dizer que foram os piores da minha vida”. Devido à manobra de Kristeller, Amanda ficou com uma mancha roxa na barriga e com dores durante, aproximadamente, duas semanas. “Fui vítima de violência obstétrica, mas meu marido também sofreu muito com isso.” O marido contou-lhe que andava a ter pesadelos com o parto e que precisava de ajuda psicológica. Amanda também se sentia muito fragilizada e focada na filha. Catarina revela que sofreu depressão pós-parto passado alguns meses, tal como o namorado. As principais consequências foram o desgaste emocional que conduziu ao desgaste físico. Catarina dormia mal e tinha pesadelos, em que lhe tinham trocado o filho. O reconhecimento da relação mãe-filho também foi afetada, uma vez que o modo como as coisas foram feitas, não permitiu que houvesse “uma perceção de quando é que acabou uma gravidez e se iniciou uma nova fase da maternidade”. A dinâmica familiar tornou-se complicada e “uma situação que dizem ser tão feliz, acabou por não o ser”. Cada mulher importa Ana acredita na possibilidade de ressignificar aquilo que lhe aconteceu, admitindo que falar sobre o assunto e querer fazer a diferença a ajuda a nível pessoal. A nível profissional, a enfermeira afirma: “Não posso mudar o que está no passado, mas posso tentar que isso não aconteça novamente.” “Falar de violência obstétrica com profissionais é muito difícil, porque eles acham logo que estão a ser acusados”. Há várias formas de abordar os especialistas e nunca se pode entrar a pés juntos. Assim, Ana estudou a violência obstétrica com base na perspetiva ética e socioantropológica, com o objetivo de conseguir chegar aos profissionais de saúde. Catarina assumiu o combate à violência obstétrica, como a sua “luta pessoal”, numa tentativa de falar pela sua mãe, pela sogra e pelas amigas, evitando que elas passem pelo mesmo. Já com um estudo intenso, Patrícia descobriu o conceito das doulas. No estrangeiro fala-se imenso, mas em Portugal a profissão “ainda está associado a muito misticismo”. Para que mais nenhuma mulher sentisse falta de apoio, Patrícia decidiu formar-se em doula. O acompanhamento de doula é importante porque “dá-nos uma educação perinatal e dá o apoio emocional que precisamos ao longo da gravidez”. Grávida de segunda viagem, Patrícia optou por um parto domiciliário assistido e admite que a experiência negativa do primeiro pós-parto foi um elemento decisivo. “A experiência de internamento nas horas a seguir ao parto foi muito difícil de gerir e não quero passar por isso outra vez”. Catarina e Amanda gostavam de voltar a engravidar e, tal como Patrícia, manifestaram interesse em realizar um parto domiciliário, devidamente acompanhadas por especialistas. Caso não seja possível, ambas dizem que vão ter o filho no hospital, mas garantindo que não passam por algo semelhante às experiências anteriores. Uma resposta descabida Após o parto, houve momentos em que Amanda pensava que o que lhe tinha acontecido não era assim tão comum e que o facto de ser brasileira influenciou negativamente. Porém, meses mais tarde, quando uma amiga teve uma experiência semelhante à dela, no mesmo hospital, Amanda decidiu pesquisar ainda mais sobre o assunto e agir. Deste modo, apresentou uma queixa formal ao hospital, descrevendo detalhadamente o seu parto, citando estudos médicos que defendem que o descolamento de membranas não tem quase nenhum benefício, quando é feito antes das quarenta e uma semanas. Ainda mencionou quais os direitos violados. O hospital negou a acusação de violência obstétrica, de xenofobia e de falta de humanidade, defendendo-se com os anos de experiência e qualidade de formação dos profissionais de saúde e o respeito pelo protocolo. Referiram ainda que na consulta de pós-parto comprovou-se que a bebé estava saudável. “Para mim o que colocaram foi: a sua filha está bem, por isso, cale a sua boca”, revela. Catarina ainda não apresentou uma queixa formal, mas tem intenções de o fazer. O seu objetivo é saber quem foi a equipa médica que a assistiu, com o intuito de apresentar uma reclamação específica. “Quero que elas [as profissionais de saúde] sejam chamadas à atenção, para reconhecerem o erro e promoverem uma mudança de protocolos, uma reciclagem de formações, apostando na investigação mais atual”. Voltar ao início

  • Parir em mãos alheias

    O conceito de violência obstétrica ainda é bastante ambíguo e está a passar por uma operação de normalização, em que os utensílios são distintos em todos os partos, de todas as mulheres. Começou por se desenvolver este termo em 2007, na Venezuela, como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres. Para Sónia Barbosa, enfermeira parteira especializada em Saúde Pública e Obstetrícia, o conceito de violência obstétrica, apesar de ainda não estar definido no mundo científico, “pode ser entendido como qualquer violência a que mulher esteja sujeita, durante o ciclo gravídico puerperal”, ou seja, na gravidez até ao pós-parto, incluindo, por exemplo, consultas pré-concecionais e de infertilidade. Defende que esta violência está relacionada “com protocolos, normas e procedimentos que, muitas vezes, não têm evidência científica, mas são procedimentos de rotina institucionalizados” que os profissionais dizem e acreditam que têm de cumprir. No entanto, violência obstétrica é um termo que se transforma e que se acomoda de maneira distinta nos países desenvolvidos e não-desenvolvidos. “Aqui em Portugal, nós falamos do excesso de intervenções, o excesso de cuidados, tudo é muito cedo, tudo muito precoce. Noutros países há mulheres que não têm sequer acesso a cuidados de saúde pessoal”, afirma Vânia Simões, jurista e membro da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez (APDMG). Vânia acrescenta ainda que “É um pouco complicado estabelecermos um conceito que acaba por agradar todas estas realidades”. No parecer da Ordem dos Médicos, a julho de 2021, em resposta às recentes acusações por parte de centenas de mulheres, os mesmo defendem que “o termo não se adequa à realidade que se vive nestes países; lança alarme, medo e desconfiança sobre as grávidas e as suas famílias". É uma expressão de difícil flexibilidade, que não parece ser uniforme para todas as realidades existentes. Alexandrina Mendes, médica especialista em Ginecologia e Obstetrícia, admite que numa fase inicial teve uma reação semelhante, no sentido de considerar o termo “muito agressivo para as práticas que são feitas e que não são intencionais”. A obstetra reforça ainda que o facto da Organização Mundial da Saúde ter emitido recomendações, para uma experiência de parto positiva expõe o impacto do problema a nível mundial. A agravante pandémica A pandemia agravou esta situação e fez com que mais mulheres falassem abertamente sobre as suas experiências negativas. “Houve hospitais portugueses que, além de limitarem o acompanhante, que é um direito legal e não estava revogado na lei, ainda obrigaram as mulheres a ter partos induzidos ou cesarianas, sem nenhuma justificação, a não ser conveniência profissional”, por ser uma cirurgia planeada, expôs Sónia Barbosa. A enfermeira acrescenta que vai, consequentemente, ter uma repercussão na saúde mental de mães e bebés. “Nós vamos pagar esta fatura em termos de sociedade.” “Infelizmente houve, sem dúvida, mais violência obstétrica nestes dois anos de pandemia”, admite Alexandrina. A obstetra refere ainda que trabalhou num hospital em que apenas faziam cesarianas a todas as mulheres que tivessem testado positivo com o vírus, para evitar uma situação de emergência em que pudesse haver complicações no parto. O hospital optou por submeter as mulheres a uma cirurgia que podia agravar a patologia, apenas “a pensar na possibilidade de uma coisa muito pouco provável acontecer, […] e isso é violência”. Voltar ao início

  • Uma dor além parto

    Em Portugal começa a ficar visível uma problemática que ainda é considerada por muitos demasiado íntima e normalizada para ser partilhada. No entanto, a realidade sobrepõe-se à conceção idílica da sociedade sobre o parto e, em 2017, surgiu a petição pública: “Pelo fim da Violência Obstétrica nos blocos de parto dos hospitais portugueses”. Em apenas três dias conseguiu ultrapassar o número de assinaturas necessárias para ser submetida na Assembleia da República. Hoje, conta com mais de nove mil assinaturas, espelho da verdade recalcada. Reportagem dividida em quatro capítulos:

  • É ver o vírus passar...

    O vírus pode ser invisível, mas a desigualdade social é evidente de forma gritante nos países mais pobres. Não, não se preocupem. Este não é mais um artigo sobre como o vírus avassalou as nossas vidas. Como, de forma direta, se apoderou da nossa palavra e do nosso corpo. Se intrometeu nas nossas relações. Este artigo é sobre um outro tema que também confere medo, que pode abanar a cápsula de vidro que coabitámos. Um tema em que alguns também discordam que seja real, até invisível para os que se esforçam em ignorar, mas não ausente: a desigualdade social. Quando vem à mesa a temática da covid-19 – e as vezes não são poucas – parece-me que a maioria das pessoas já se habituou a usar máscara na rua, tanto que por vezes estou em casa e ainda dou por mim com ela. Contudo, não deixo de ouvir falar na injustiça que é levar uma vacina que no final “não resultou”. Não sei se será efeito secundário, mas percorre-me nas veias uma raiva miudinha assim que ouço alguém dizê-lo. Vamos lá analisar porquê. É necessário reconhecer que o esforço para encontrar uma arma contra o vírus foi notável e de extrema importância. O tempo e a cooperação internacional ajudaram a mobilizar vacinas em menos de dois anos de pandemia. Quando olhamos para o número de mortes pelo vírus, percebemos que talvez “inútil” não será o melhor adjetivo para descrever o papel desta arma contra a covid-19. No entanto, a existência de vacinas fez com que, de modo agressivo, se evidenciasse ainda mais o fosso de desigualdade entre países desenvolvidos e não-desenvolvidos. Está registado que pelo mundo, já 58% da população foi vacinada com, pelo menos, uma dose. Quando olhamos para a União Europeia, a taxa é de 73%. O grupo dos países mais desenvolvidos do mundo (G7) têm taxas de vacinação iguais ou superiores a 73%. Na América do Sul atingiu-se já os 76% e na Ásia 66%. Todos estes países, regiões ou continentes ultrapassaram a meta de 40% de pessoas vacinadas até ao final deste ano fixada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O mesmo não se pode verificar no continente africano, em que apenas 9% da população teve acesso a vacinação completa. O vírus pode ser invisível, mas a desigualdade social é evidente de forma gritante nos países mais pobres. A falta de organização e financiamento faz com que se torne difícil o acesso às vacinas, enquanto que por cá se fala da falta de organização nos centros de vacinação, de um procedimento dado gratuitamente. O aparecimento da variante Ómicron é, possivelmente, um acontecimento feliz para os habitantes africanos. Enquanto que o mundo se revolta uma vez mais dos confinamentos forçados, os grandes líderes mundiais passam a perceber que se a vacinação não for uma ação igualitária, o vírus procederá a evoluir e a mutar-se continuamente. Citando o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus: “Quanto mais deixamos que a pandemia se perpetue, ao não impedirmos as desigualdades no acesso às vacinas ou não adotando medidas sociais e de saúde pública de maneira apropriada e consistente, mais daremos a este vírus a possibilidade de ter uma mutação que não podemos prever nem impedir". Com certeza que esta divisão clara de privilégios não é de agora (nem permanecerá no passado), mas desta vez, como o impacto da injustiça social nos começa a afetar a todos, talvez exista uma ação global mais forte para lutar contra a mesma. Artigo escrito por: Mafalda Barbosa

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