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  • Foto do escritorJornal Invicto

Dentro das paredes hospitalares

Atualizado: 20 de jan. de 2022

Parece unânime que o parto deva ser visto como um procedimento fisiológico. Sónia Barbosa defende que a gravidez e, em particular, o parto devem ter menor intervenção humana. Reforça que se deve recorrer às manobras “só para casos muito específicos, em que possa ser uma mais-valia”.

Fotografia: Getty Images

Os media têm alertado para a necessidade de “humanizar” um dos momentos mais naturais na vida da mulher, mas crê-se que o verbo não está a ser bem empregue. O desenvolvimento das práticas médicas e da tecnologia contribuiu para a descrença de que a mulher tem capacidade suficiente para dar à luz de forma independente. “Deixaram de acreditar nesta natureza fisiológica do parto”, acrescenta ainda.


A enfermeira Sónia explica que “quando as mulheres pedem um parto humanizado, estão acima de tudo a pedir um parto com respeito”. Por outro lado, a face da moeda muda quando os profissionais de saúde falam deste tipo de parto.


Rui Miguelote, médico especialista em Obstetrícia, diz que o desejo da comunidade médica é que as parturientes estejam “mais monitorizadas, tanto a parte materna como a parte neonatal”. O médico afirma que, desde de 1960, a taxa de mortalidade materna e neonatal tem vindo a diminuir drasticamente, sendo que, hoje em dia, é até vinte vezes inferior. Acredita que esta “revolução da mortalidade” conduziu a que os profissionais de saúde insistissem na prática de manobras que permitissem controlar cada vez mais este processo. Rui Miguelote consegue, no entanto, admitir que muitas “intervenções estavam, se calhar, a desumanizar ou a tornar uma coisa fisiológica numa coisa, excessivamente, medicalizada”.

Existe uma confiança plena que se injeta nos médicos e acaba por despir as mulheres da crença de que se podem impor ou até mesmo escolher a maneira como querem ter o seu bebé. “Acreditam que não conseguem fazer isto [o parto] sozinhas e que precisam dos médicos: eles surgem aqui como salvadores”, afirma Vânia Simões. É um problema sistémico, que tem origem nas raízes de uma sociedade que tende a ver os profissionais de saúde como seres omnipotentes. Contudo, a enfermeira Sónia admite que em obstetrícia “os profissionais intitulam-se como defensores do bebé, com a justificação que estão a salvar a vida dele, e atropelam o direito à autonomia da mulher. Isto legalmente não pode acontecer, mas é a realidade”.


Fotografia: Manuel Roberto

A falta de liberdade e autonomia advém desta conceção ilusória e difícil de combater. “Quando a mulher é admitida no hospital, é logo sujeita a uma cascata de procedimentos em que ela não tem liberdade para decidir sobre o seu parto e as suas escolhas reprodutivas”, reconhece Vânia. A realidade é que, apesar de estarmos no século XXI, a mulher continua a ter um papel submisso e, para Sónia, na obstetrícia, a dificuldade deve-se ao facto de estar "perante alguém com uma posição de poder”.


A vulnerabilidade da mulher durante o trabalho de parto é também propícia a que a mesma não consiga (ou possa) tomar decisões.


A mesma reconhece que esta atitude não vem só dos profissionais de saúde, mas também dos próprios familiares, companheiros e amigos, que encorajam a que a parturiente coloque a opinião do médico à frente das suas próprias convicções.


O obstetra Rui Miguelote reconhece esta realidade, confessando que os médicos acabam “por limitar muito as liberdades, nomeadamente a movimentação durante o trabalho de parto, e intervir bastante para prevenir várias complicações que, se calhar, valeria a pena arriscar ou partilhar com as parturientes”.

Uma das lacunas mais claras na obstetrícia é a omissão de informação.


“São parcos na informação, apenas transmitimos aquilo que nós achamos bem.”



No nosso país, os principais casos de violência obstétrica estão estreitamente relacionados com a “falta de consentimento informado”, reconhece a advogada Mia Negrão.


Fotografia: Getty Images

Quando as mulheres dão entrada no hospital, é-lhes fornecido um formulário que descreve as possíveis séries de manobras a que podem ser sujeitas, como a utilização de fórceps (um instrumento para extrair o bebé, que pode ser perigoso para a mãe e para o recém-nascido, utilizado em casos extremos), a realização de episiotomia ou cesariana e a utilização de ventosas. A realidade é que este formulário não oferece às grávidas uma explicação uniforme e suficiente daquilo que pode vir a acontecer, ou mesmo da maneira que as pode afetar futuramente.

Muitas das mulheres que têm vindo a manifestar sobre esta problemática e a denunciar os seus próprios casos, acreditam que existe um abuso de poder por parte dos profissionais. Sónia Barbosa admite que a explicação dos procedimentos aos pacientes é fulcral, mas que é raro acontecer na obstetrícia. “Em Portugal, decidimos que era melhor induzir o parto às quarenta e uma semanas, mas não explicamos à mulher o porquê. A ciência não é evidente quanto a essa recomendação e não lhe damos oportunidade de recusar”, acrescenta.


A obstetra Alexandrina exemplifica o caso da episiotomia como um dos sistemas mais controversos, em que já é sabido que “nem sempre tem benefícios, mas aplica-se na mesma e é o que na academia se continua a ensinar, como uma prática mais regular”.


Mia Negrão admite que existe um abuso de poder que não parece ser tão significativo noutras áreas de saúde, mas que “nesta em específico é muito mais preocupante, na medida em que não estamos a falar de pessoas doentes, estamos a falar de pessoas grávidas, de processos naturais e fisiológicos”.


Fotografia: Site da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto

Aos olhos da obstetra Alexandrina, os médicos e enfermeiros portugueses recusam-se a aceitar que este problema é uma realidade. É difícil reconhecer, enquanto profissionais de saúde, que estão a exercer violência sobre pessoas, mesmo que inconscientemente: “não querem reconhecer que estão a causar dano, nomeadamente algo que possa ter um impacto tão negativo na sociedade e, no fundo, possa ser muito mal visto”.


Tanto Alexandrina como Sónia acreditam que, em Portugal, a mulher informada pode ser marginalizada, uma vez que vai entrar em confronto direto com o profissional. É gerado um ambiente de desconfiança e “parte-se do princípio que as coisas não vão correr bem”. É fundamental uma comunicação saudável para que se compreenda os termos em que se deve agir.


Sónia Barbosa crê que “um ponto primordial para a mudança” é a formação académica. Ao longo dos anos, o ensino “tem vindo a preparar os profissionais para aquilo que é a realidade prática e não para aquilo que devia ser feito”, também com receio das repercussões que os alunos possam sentir “se tentarem fazer diferente”.


“É uma mudança lenta e falta um pouco de coragem para abanar esta estrutura.”

Não é só além continentes que se sente diferença na prestação de cuidados de saúde. Nos países desenvolvidos também se encontram dissemelhanças inquietantes. Ana, uma das testemunhas, acabou o curso de enfermagem em 2015 e mudou-se logo a seguir para Inglaterra. Sentiu diferenças no serviço de saúde e no modo como os profissionais trabalham. Ao início, achava muito estranho que os seus pacientes lhe questionassem o porquê de tudo o que fazia. “As minhas intervenções vão ter consequências no corpo e na saúde deles, por isso têm todo o direito a perguntar que outras opções há”, alude. O envolvimento com os utentes torna mais fácil a adesão dos mesmos ao tratamento, o que contribui para melhores resultados na saúde.


Fotografia: Manuel Roberto

Outra diferença em Inglaterra é a grande aposta na formação contínua dos profissionais. Trata-se de um processo construtivo, caso Ana sentisse “que não tinha tanto conhecimento numa determinada área o hospital facultava uma formação”. Em Portugal, Ana afirma que não há muita abertura: “tenho que fingir que sei tudo, errar é visto quase como uma fraqueza”. “É isso que também faz muita falta no sistema de saúde português: apoiar os profissionais para serem melhores e para se atualizarem”, conclui.


“Nós temos que começar pelo nível da responsabilidade civil, com a sensibilização e a prevenção dos profissionais de saúde destas práticas”, afirma a colaboradora da APDMG. Vânia ainda acrescenta que é crucial ter o apoio dos profissionais de saúde.


“Isto é uma luta contra todo um sistema.”


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