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  • Foto do escritorMafalda Barbosa

Pintar a morte

O meu fado é esperar por um dia que nunca mais vem. É querer espremer as memórias e mergulhar nelas, esperando que não sequem como outrora as minhas tintas numa paleta. É sonhar para não morrer; é sonhar em morrer.

Ilustração por Cagle Cartoons

Hoje acordei mais uma vez com vontade de pintar o rapaz que se familiarizou com aquele banco de jardim de letras gravadas em todas as ranhuras. Todas as manhãs sento-me na janela a observá-lo, enquanto o fumo que saía da minha chávena de café aquecia-me as ideias e me desfocava a visão, sem nunca perder foco nele.


Queria pintar o seu retrato, mas nunca encontrei o ângulo que me favorecesse. Sim, a mim. Ele dava-se a conhecer sem se aperceber e todas as perspetivas que me oferecia eram singulares. Sei que talvez a minha profissão influencie a maneira como vejo cada contorno do corpo humano, mas sentia que voava com o vento uma certa provocação ambígua e incerta.


Acho que nunca me apaixonei por ele, mas por aquilo que o meu pincel poderia vir a sussurrar à minha tela quando lhe desse oportunidade. Contudo, resisti. Olhei para o lado e observei a janela pelo canto do olho, na esperança de o ver. Que estupidez. Por vezes, esqueço-me que mudei de casa.


A luz pendia suavemente no escuro, criando sombras que brincavam no chão. Nas paredes ressoavam os breves murmurinhos do corredor, em conjunto com os passos pesados dos chefes da casa. Mudei-me para um lugar com mais pessoas que camas, contra a minha própria vontade. Não havia muito que pudesse fazer.


O braço que me suportava a criatividade parou. Não porque deixei de querer que nas veias ecoassem as minhas ideias, mas simplesmente desistiu. Mais tarde, também as minhas pernas receberam sinal. Às vezes questiono-me se o meu cérebro fez tudo isto por triste ciumeira. Talvez fosse penoso ver-me a partilhar com o mundo aquilo que, em antemão, segredava apenas com ele.


A tela em que pinto hoje em dia está bem acomodada na minha mente, assim como o conjunto de cores tímidas de que muitas vezes me esqueço. O pincel ainda o sinto (sem o sentir), encostado na minha mão, a dançar comigo. Contudo, entediei-me com a única coisa que me resta. A criação vem do viver, e eu deixei de fazer ambos.


Em vez disso, apenas existo, sem realmente ter consciência do que sou. O meu fado é esperar por um dia que nunca mais vem. É querer espremer as memórias e mergulhar nelas, esperando que não sequem como outrora as minhas tintas numa paleta. É sonhar para não morrer; é sonhar em morrer.


Ouço o barulho incessante das máquinas. O constante murmurinho de quem me rodeia sem vontade e que me pergunta como me sinto sem que possa responder de volta. Aos poucos deixaram de aparecer. Só resta o meu pai, que me parece molhar a palma da mão, na cadeira do hospital que se afunda a cada respiro mais forte.


Pelo que consegui perceber, sorria ao de leve. Achei bizarro. Olhava na direção da pequena televisão, no canto da sala oxigenada, e disse em voz alta “Parece que o Presidente chumbou de novo a Eutanásia”. Podia jurar sentir uma forte dor no estômago. Os sons à minha volta amplificados. A voz a arranhar a garganta com o desespero de querer sair.


Lembrei-me do rapaz do banco. Lembrei-me do vapor do café. Lembrei-me do último sorriso que ofereci, acompanhado do último suspiro. A nostalgia do outrora a preencher-me cada poro. Sei porque me sentia assim, mas não percebia porquê. Já me tinha acomodado na falta de esperança. Talvez fosse o sorriso triste na cara do meu pai, em saber que me continua a ter, sem me perder de vista.


Fecho os olhos para mais um dia. Antes fosse para nunca mais os abrir. Não vale a pena mantê-los abertos quando tudo o que vivi, é também o que vivo agora. Pinto o meu maior desejo que anda de mãos dadas com aquele que outrora era o meu medo. Pinto a morte, sem me aperceber se estou a retratar o presente ou o futuro.



Artigo escrito por: Mafalda Barbosa

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