Ao longo dos anos, as denúncias de abusos sexuais de mulheres congolesas têm vindo a aumentar gradualmente, abrangendo não só familiares como trabalhadores humanitários. As vozes das vítimas têm sido ouvidas e ganham cada vez mais força nesta luta.
Há uma década que se fazem ouvir as vítimas da República Democrática do Congo. Um estudo publicado no American Journal of Public Health revelou que neste país mais de 400 mulheres são violadas por ano e cerca de 60% dos abusadores eram familiares, incluindo os próprios maridos. Por outro lado, um estudo anterior divulgado pela Organização das Nações Unidas estima que a violência sexual nesse mesmo ano era 26 vezes menos comum – atingindo 15 mil mulheres.
A investigação foi conduzida entre 2006 e 2007 através de dados do Governo e contou com os testemunhos de 3400 mulheres, cujas idades compreendiam os 15 e 49 anos. Tia Palermo, umas das autoras do estudo americano, acredita que “em nenhum lugar do Congo, uma mulher está a salvo da violência sexual”.
O Governo da República Democrática do Congo reconheceu, em 2008, viver uma crise de violações em massa no país. A Organização das Nações Unidas definiu o país como “a capital mundial da violação”.
Condenação perpétua das mulheres
Youyou Muntu Mosi, militante congolesa e defensora dos Direitos Humanos, afirmou, em entrevista ao The British Blacklist, que a mulher congolesa, se for violada, é discriminada socialmente. É violentada, física e psicologicamente, pelo companheiro e colocada de parte pela própria família.
Mosi disse que estas mulheres “estão mais sujeitas à precariedade, ao isolamento, ao desemprego e a certa estigmatização social, ligada precisamente à violência sexual, física e/ou psicológica sofridas”.
De trabalhadores humanitários a abusadores
O vírus do ébola foi descoberto em 1976 na atual República Democrática do Congo (RDC). Desde então, ocorrem surtos esporádicos em África. Entre 2014 e 2016, a doença devastou a região oeste do continente africano e é considerada a pior epidemia da história da República Democrática do Congo. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou uma “emergência global de saúde pública”.
No início de maio, a RDC declarou o final da 12.ª epidemia de ébola no país. Contudo, no início de outubro, uma criança de 3 anos morreu com o vírus do ébola.
Durante esta longa luta de esforços para combater a doença, as denúncias de exploração e abusos sexuais por parte de funcionários da Organização Mundial da Saúde têm aumentando gradualmente.
As múltiplas denúncias, divulgadas pela Reuters, surgiram de uma investigação realizada pela Thomson Reuters Foundation e pela New Humanitarian. Os relatos das vítimas foram confirmados por funcionários locais e motoristas de organizações não-governamentais e humanitárias, respetivamente.
Muitas das entrevistadas referiram que os homens propunham ou as obrigavam a ter relações sexuais em troca de contratos de trabalho. Quando o pedido era rejeitado e a vítima já estava a trabalhar, o contrato terminava.
Os casos reportados nesta investigação englobam os anos de 2018 a 2020, em Beni, província do Kivu Norte. O facto dos números serem altos e as denúncias serem bastante semelhantes indicam que a prática era generalizada.
Os relatos são contra homens que trabalhavam na OMS, incluindo médicos, e funcionários do Ministério da Saúde da RDC, de outras agências da ONU e também de quatro ONGs internacionais.
As mulheres afirmam terem sido encurraladas nos centros de emprego e nos hospitais – onde eram afixadas as listas de quem tinha conseguido trabalho. Também relatam terem sido trancadas e drogadas. Muitos não usaram preservativo e algumas das vítimas engravidaram, sendo que parte dos alegados abusadores insistiam para que as mulheres abortassem.
A maioria das vítimas não fez queixa até serem contactadas pelos jornalistas com receio de perder o emprego, de possíveis vinganças e por vergonha. Kahambu, uma das vítimas, relatou à DW África que "há também alguns que foram infetados com doenças sexualmente transmissíveis, como SIDA, porque a maioria das ajudantes estava doente. É o caso de uma mãe que trabalhava connosco. Um de nossos chefes, recentemente foi diagnosticado seropositivo".
Desanges, uma das denunciantes, culpa um médico da OMS pela morte da sua irmã, Pendeza. Desanges relatou que o médico, assim que soube que Pendeza tinha engravidado, desapareceu e não atendeu as chamadas telefónicas. Assim, para esconder a gravidez do marido, decidiu correr o risco de fazer um aborto. Quando se dirigiu ao hospital, os funcionários assumiram que a hemorragia era devido ao ébola e não de um aborto mal feito, isolando-a com os restantes pacientes. Pendeza acabou por falecer nessa mesma noite e foi enterrada como uma vítima da doença.
A resposta da OMS
No início de outubro, a União Europeia suspendeu o financiamento dos programas da Organização Mundial de Saúde, na República Democrática do Congo, após tomar conhecimento dos abusos, explicou Balazs Ujvari, porta-voz da Comissão Europeia.
Em 2020, a OMS anunciou que todos aqueles envolvidos nas acusações de exploração e abuso sexual na resposta ao ébola na RDC vão enfrentar consequências imediatas. A organização disse ter “tolerância zero” para este tipo de comportamento. A OMS confirmou já nessa altura que iria abrir uma investigação interna.
Artigo escrito por: Inês Cristina Silva
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