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Afonso Reis Cabral: “Acho que a literatura é isso: é a descoberta, é alargar a vida”

Atualizado: 20 de jan. de 2022

Um dos maiores escritores portugueses da atualidade: é assim que podemos caracterizar Afonso Reis Cabral. À conversa com o jornal Invicto, o romancista faz uma viagem pela sua jornada pessoal e profissional, percorrendo os momentos mais marcantes dos seus 31 anos.

Foto: Facebook / Afonso Reis Cabral

Filho dos anos 90, autodenomina-se escritor desde tenra idade. Com 9 anos, já escrevia “má poesia”, mascarada em desgostos inexistentes, pertencentes a um alter-ego que habitava numa pasta do computador.


Ganhou mais terreno no mundo literário após receber o Prémio LeYa , em 2014, com o seu primeiro romance, "O Meu Irmão". Anos mais tarde, partiu para a descoberta de um mundo muito diferente do círculo que conhece, acabando por publicar "Pão de Açúcar", um romance baseado no caso Gisberta, que lhe valeu o prémio José Saramago em 2019. Afirma que apesar de pouca ligação com a invicta, a "pulsão literária da cidade” fez com que ambas as obras tivessem como plano de fundo as ruas antiquadas do Porto.


Mais recentemente lançou a obra "Leva-me Contigo", que documenta a viagem que fez sozinho e apenas com os próprios pés, percorrendo os mais de 700 km da Estrada Nacional 2. Para breve, está marcada outra viagem, mas esta será para reciclar a aclamada epopeia portuguesa, criando um novo manuscrito que seja uma “janela para a atualidade”.


Atualmente, podemos afirmar que é na pausa do café que tem tempo para ser editor, a profissão que acreditava que lhe daria estabilidade. Contudo, sempre teve uma ilusão satisfatória de que o nome Afonso Reis Cabral não estivesse sempre na contra capa.


Jornal Invicto - Nasceu em Lisboa, mas foi na cidade do Porto onde cresceu. Quais são as principais memórias que guarda da sua infância e adolescência na Invicta?

Afonso Reis Cabral - É um bocado difícil responder a isso, porque eu cresci no Porto e até aos 18 anos era a minha vida, portanto, não são poucas memórias nesse sentido. A experiência que eu tenho do Porto até é um bocado curiosa, porque só a partir do 10º ano é que estudei numa zona mais central. Eu estudava no colégio Cedros na Arrábida, e durante boa parte da minha infância, exceto aos fins de semana, era mais ou menos a vida de Arrábida e Montes dos Burgos, que é a zona onde os meus pais vivem.


Ao mesmo tempo, eu nunca fiz muito a vida de sair à noite e tudo mais, nessas idades. Portanto, há uma determinada vida no Porto que eu tenho pena de não ter tido nessa altura, que me ficou, de certa maneira, vedada. Depois, na [Escola Básica e Secundária] Rodrigues de Freitas, numa zona mais central, foi uma experiência extraordinária, porque é um grande estabelecimento de ensino. Do ponto de vista literário, fiz o lançamento do meu primeiro livro, o “Condensação”, com uma pequena editora do Porto, chamada Corpos Editora.


"No entanto, é curioso que nos meus dois livros, mais ou menos por coincidência, são passados no Porto e, de certa maneira, há uma pulsão muito literária na cidade e nos ambientes que eu descrevo, que são ambientes que me interessam, como ambientes de exclusão, de pobreza e dificuldade, que fui beber muito ao Porto, de facto"

Eu não sinto que tenha uma ligação muito grande à cidade. Aquela parte da vida em que se começa a conquistar as coisas foi em Lisboa, não é? Conquistar a vida, trabalhar, arrendar casa. Portanto, esse conhecimento e essa relação com a cidade eu tenho-a muito mais com Lisboa. No entanto, é curioso que nos meus dois livros, mais ou menos por coincidência, são passados no Porto e, de certa maneira, há uma pulsão muito literária na cidade e nos ambientes que eu descrevo, que são ambientes que me interessam, como ambientes de exclusão, de pobreza e dificuldade, que fui beber muito ao Porto, de facto.


J.I. - Nessa altura, quando era uma criança, já escrevia e para si a poesia era “quase um teatro”. Porque é que tinha essa relação com a poesia, sendo tão novo?

ARC - Eu acho que estas coisas, muitas vezes, acontecem mais ou menos por acaso. Eu considero que tenho uma predisposição natural para escrever, o que eu posso talvez apelidar de vocação, enfim, para não chamar outras coisas, porque ninguém é bom advogado em causa própria, não é? Ao mesmo tempo deu-se o caso de, tendo essa predisposição natural, haver em casa livros e os meus pais serem grandes leitores. Portanto, isso deu o ambiente ideal para que começando a escrever não houvesse entraves e muito pelo contrário, houvesse apoio e incentivo.


Eu escrevia prosa, contos e coisas assim, embora mais poesia. A poesia, de certa maneira, é uma resposta natural ou mais instintiva a querer escrever. Para a prosa é preciso enredo, é preciso ideias de história, uma voz e uma concessão das coisas. A poesia, como eu a fazia, que era má poesia, é escrever uns versos, dizer umas coisas.


Eu tinha 9, 10, 11 anos e estava a falar das saudades da infância ou de angústias existenciais que eu não tinha, ou seja, aquilo era um teatro. Eu tinha uma pasta no computador chamada de “alter-ego”, onde eu guardava a poesia. Portanto, eu assumia que era o meu alter-ego, não era nada confessional, no sentido de estar a falar sobre as minhas amarguras.


Fotografia: Bruno Gonçalves
J.I. - Tal como no conselho que deu no evento do centenário de José Saramago na livraria Lello, os seus pais também lhe incutiram hábitos de leitura, ao ler para si?

ARC - Sim, claro. Particularmente a minha mãe, embora o meu pai também. Em idades muito importantes para estruturar o gosto pela leitura, com um ano, dois, três, por aí, lia-me todas as noites um conto das “365 histórias de encantar” ou as histórias do bosque e isso é essencial para se formar leitores. Se de facto os pais se queixam, pelo menos aqueles que têm a mínima consciência que a leitura é uma coisa muito importante para as pessoas, que os filhos não leem, mas ao mesmo tempo não dão o exemplo aos filhos, depois é muito difícil as crianças irem buscar esse gosto. Claro que acontece e é muito mais excecional do que no meu caso, por exemplo, em que foi perfeitamente natural ter muitos livros em casa e ler, tendo esse gosto.


"De facto, era romancista e não propriamente poeta"

J.I. - Publicou o seu primeiro livro aos 15 anos, o “Condensação”, foi a partir daí que passou a assumir-se escritor?

ARC - Na verdade, não. Eu achava que era escritor desde os 9. Achava. Era uma ilusão e acho que essa ilusão funcionou bem, porque ninguém me desiludiu e ninguém me contrariou e continuei com essa ficha posta, digamos, até hoje. Portanto, aos 15 anos foi uma certa viragem. Eu escrevia prosa, mas mais poesia e percebi, quando publiquei o “Condensação”, que não era esse o caminho, não era a minha vocação. De facto, era romancista e não propriamente poeta.


J.I. - Aos 9 anos já dizia que queria ser escritor e aos 15 publicou o seu primeiro livro. O jovem Afonso de 18 anos quando foi para Lisboa estudar Literatura também já tinha os planos bem definidos?

ARC - Eu acho que sim. No entanto, do ponto de vista de vocação, de sentido de realização de vida através da escrita, nunca tive de escolher nada. Quando fui para a Rodrigues de Freitas fui porque queria estudar Línguas e Literaturas, quando vim para Lisboa foi para estudar Literatura e estar num curso superior que pudesse dar alguma saída profissional, embora muito pouca, porque em Letras é assim, não é? Mas que pudesse dar alguma saída profissional na área da edição. Hoje em dia também sou editor, embora não seja o meu trabalho principal. Não havia escolhas, era o que eu gostava, o que eu queria.


O plano era escrever um romance, tirar o curso e trabalhar numa editora para o lado prático da vida estar assegurado e ter algum dinheiro ao fim do mês.


"Apesar de caminhar sozinho tinha sempre alguém que me oferecia ajuda, estadia, uma palavra amiga. Portanto, na verdade, foi uma solidão acompanhada"

Foto: Facebook / Afonso Reis Cabral
J.I. - Falando um pouco das viagens que fez, entre abril e maio de 2019, percorreu a pé os mais de 700 km da Estrada Nacional 2, sendo que essa experiência deu origem ao livro “Leva-me Contigo”. Porque é que decidiu fazer esta viagem sozinho?

ARC - A melhor resposta é não sei (risos). Eu tinha algum tempo disponível, tinha lançado o “Pão de Açúcar” há dois ou três meses, já tinha passado a fase promocional do livro e achava que estava a precisar de uma espécie de retiro, ou seja, de um exame de consciência, fazer um balanço do positivo e do negativo, do que poderia vir a fazer melhor, e isto não digo só do ponto de vista literário, mas sim como pessoa. Para isso, faz-se sozinho e sem carro de apoio. Embora, depois, através das redes sociais e dos textos que ia escrevendo todos os dias, aquilo explodiu e apesar de caminhar sozinho tinha sempre alguém que me oferecia ajuda, estadia, uma palavra amiga. Portanto, na verdade, foi uma solidão acompanhada.


J.I. - Qual foi a melhor ou principal lição que reteve desta viagem?

ARC - Não sei bem. Quer dizer, a principal lição foi perceber plenamente que de facto o ser humano pode ser uma maravilha. Acho que nós temos muita tendência de nos menosprezar, vermo-nos como uma espécie de mal na terra, que polui e que estraga, mas a verdade é que o ser humano é muito mais do que isso. Nós somos a criação perfeita. Ver o ser humano a ser absolutamente solidário, absolutamente entregue ao próximo e esse próximo por acaso ser eu durante essas 3 semanas foi incrível.


J.I. - O seu gosto pelas viagens vem de há muitos anos. Também foi duas vezes à Alemanha de camião TIR, a primeira das quais com treze anos. Considera que as viagens são o método predileto para se inspirar para as suas narrativas?

ARC - Não, não. Eu, aliás, não me considero propriamente viajante. Por exemplo, o José Luís Peixoto, viaja imenso e é um escritor-viajante; o Gonçalo Cadilhe não é só escritor-viajante, como é escritor de viagens e por aí fora. Eu vejo-me simplesmente como um romancista. Aconteceu, aos 13 anos, ir à boleia com um camionista para a Alemanha. Depois, voltei a fazer essa viagem aos 25, para relembrar e estudar esse percurso, para eventualmente escrever um romance, ou um livro ou qualquer coisa à volta disso. Depois a nacional 2 e as viagens típicas que toda a gente faz, mas nos últimos anos tenho viajado mais profissionalmente, para ir a países onde os meus livros são publicados ou a encontros com leitores.


J.I. - Qual é que foi a motivação para um pré-adolescente fazer essa viagem?

ARC - A resposta é também não sei. Era adolescente, mas era muito puto fisicamente. Não sei bem, acho que foi a ideia de aventura, simplesmente. Nós não conhecíamos o camionista Pedro Ribas, mas sabíamos que era uma boa pessoa e proporcionou-se essa aventura. Eu meti na cabeça que queria ir, convenci os meus pais, particularmente a minha mãe que ficou um bocado aterrorizada e fui (ri).


J.I. - O entusiasmo era maior do que o receio ou medo?

ARC - Sim, tinha medo também, mas era mais o entusiasmo. Medo ou algum momento mais difícil foi particularmente na primeira noite, em que eu pensei “Em que é que eu me meti? Agora tenho mesmo que ir à Alemanha e voltar com um camionista que não conheço de lado nenhum”(ri). Mas de resto, não houve grande problema.


"De certa forma, fazer um novo manuscrito e que esse manuscrito seja uma janela para a atualidade"

J.I. - Para o ano tem mais uma preparada, a Rota de Camões. Porque é que decidiu planear esta viagem?

ARC - São várias viagens na verdade e, se tudo correr bem, é um ano a viajar entre Portugal e os vários locais onde Camões viveu. A ideia não foi minha, é uma iniciativa da Livraria Lello, que me convidou. No fundo, para além de fazer todo o percurso de Camões, eu vou pedir às pessoas para num livro em branco transcreverem à mão Os Lusíadas. Cada pessoa, uma estrofe. No fim, o objetivo é termos um novo manuscrito d’ Os Lusíadas das pessoas com quem eu me vá encontrando. Desde escritores prémios Nobel, eventualmente, cientistas, mas também as pessoas que encontro na rua, como pescadores. Imagino, por exemplo, que hoje em dia haja um guarda na gruta onde Camões esteve a certa altura em Macau, gostava que ele transcrevesse também uma estrofe. De certa forma, fazer um novo manuscrito e que esse manuscrito seja uma janela para a atualidade.


J.I. - O “Pão de Açúcar” é o seu único livro que não parte de uma experiência sua. Como é que foi imergir num tema tão distante da sua vivência pessoal?

ARC - É um bocado complicado à partida. Tive de investigar o caso Gisberta, não só o caso em si, mas também os ambientes do Porto em 2006: a problemática transexual do caso da Gisberta e os centros de acolhimento por causa dos rapazes. De facto tudo, quer pela vida da Gisberta quer pelos rapazes, era muito distante da minha experiência e isso, à partida, amedronta-me um bocado, porque é pegar em temas delicados e, depois, como é que isto resulta? Ao mesmo tempo, eu penso que a literatura é a descoberta de novos mundos, dizendo de uma maneira assim um bocado publicitária. Não só descoberta, mas como a feitura disso mesmo. Eu quando estou a escrever, estou a escrever pequenos mundos. No caso do Pão de Açúcar é a partir de uma história real, mas é ficção total.


"Acho que a literatura é isso: é a descoberta, é alargar a vida"

Eu tomei todas as liberdades ficcionais que quis. Agora tinha que haver verossimilhança, tinha que haver um certo compromisso com algumas âncoras reais. Isso implicou estudar, trabalhar, pesquisar, mas também foi o que me atraiu muito.

Acho que a literatura é isso: é a descoberta, é alargar a vida, porque caso eu tivesse seguido certas expressões em relação ao lugar de fala, eu só escrevia sobre o meu lugar de fala que é bastante desinteressante e não tem de facto material para um romance. Isso é que interessa: haver literatura em estado bruto. É isso que eu tento encontrar.


J.I. - Numa entrevista ao podcast “A beleza das pequenas coisas” do jornal Expresso, referiu que “a boa literatura usa sobretudo a quebra, a falha e o conflito. E esse conflito é da natureza humana”. Porque é que estes são os melhores temas para escrever as suas narrativas?

ARC - Talvez porque sejam os temas que definem o ser humano. Que perante uma crise, perante um confronto (a tal quebra, falha) o ser humano define-se e mostra o seu pior e o seu melhor também. Esse mostrar é muito literário. Eu acho que é perfeitamente possível fazer um romance ou uma novela a partir de um tema muito corriqueiro e transformá-lo em algo extraordinário, mas para mim é mais atrativo o ponto de partida da falha, e o ponto de partida da crise. N’ “O Meu Irmão” foi assim e no “Pão de Açúcar” também, o próximo também acho que vai ser assim. Interpreto, mais ou menos, como uma trilogia da falha. Depois, ao mesmo tempo, interessa-me personagens fortes, personagens que estejam marcadas por uma condição (o caso Gisberta o facto de ser transexual; e o caso do meu irmão Miguel ter síndrome de down). Isto são marcas muito claras e tudo se define a partir daí. Isto atrai-me, acho que literariamente resulta.


J.I. - Qual é a sua intenção ao abordá-los?

ARC - Não é intenção, na verdade. Eu acho que numa escrita não há intenção, ou seja, não há uma mensagem. Eu não quero mostrar-te a ti nada em particular, quero mostrar-me a mim que escrevo. Não há nenhum objetivo didático ou pedagógico ou de ativismo. A intenção é escrever um bom livro e se esse livro depois mostra realidades diferentes ou mostra zonas dúbias da natureza humana fico contente com isso. Até porque os meus dois narradores (“O Meu Irmão” e “Pão de Açúcar”) estão nessa zona dúbia da natureza humana, acho eu, entre o bom e o mau, mas o objetivo não é doutrinar nem ensinar.


"O romance é uma outra coisa, é um outro jogo, é um outro âmbito"

J.I. - A abordagem destas questões não parte de uma certa responsabilidade enquanto escritor?

ARC - Não, eu não sinto essa responsabilidade. Ou seja, acho que a responsabilidade é escrever literatura. E a literatura por sua vez chega às pessoas dessa maneira, mas eu não tenho qualquer pretensão de mudar a sociedade. Parece-me também, para já, pôr um peso grande demais nos ombros de quem escreve, e por outro lado também me parece absolutamente disparatado. No “Pão De Açúcar”, o caso real fala por si e as pessoas definem-se perante o mesmo, com base no conhecimento que têm. Não é preciso um romance para ensinar às pessoas que algo como o caso Gisberta é intrinsecamente mau e que não se deve tratar ninguém daquela maneira. A função de ensinar, a realidade já a deu, porque qualquer pessoa consegue perceber isso perante o caso real. O romance é uma outra coisa, é um outro jogo, é um outro âmbito.


"O que me compromete é o livro em si e o que eu escrevi, não o que outras pessoas acham em relação ao meu livro"

Foto: Afonso Reis Cabral / Facebook

J.I. - Afirmou-se muito cedo no panorama literário português, algo que geralmente ocorre quando o escritor é um pouco mais velho. Recebeu o seu primeiro grande prémio literário com 24 anos. Isso acabou por ser uma motivação ou uma pressão na sua carreira?

ARC - Foi uma pressão e uma motivação ao mesmo tempo. O prémio LeYa é o prémio que mais ajuda a lançar com projeção novos autores. É evidente que não são necessariamente primeiras obras, uma pessoa com 90 anos e 30 livros publicados pode mandar um original, mas há uma certa tradição de ser as primeiras obras e de facto ajuda a enquadrar o livro, a lançar o livro e a mostrar. Ao mesmo tempo, também há uma certa pressão. Eu achava que a minha idade na altura não seria assim muito determinante para isso, porque achava-me mais ou menos alheio a essa pressão, mas uns meses depois comecei a senti-la, não em relação ao prémio em si, que acho que na verdade não me “compromete” nada. O que me compromete é o livro em si e o que eu escrevi, não o que outras pessoas acham em relação ao meu livro.


No fundo, um prémio é isso: a opinião favorável de alguns leitores em relação a um livro. Foi mais propriamente a descoberta do leitor, isto é, cada cabeça sua sentença, e na literatura ainda mais em particular. Portanto, era como se de súbito o meu livro, que pouco mais tinha sido lido por mim e meia dúzia de amigos e família, agora tivesse muitos leitores e nesses leitores cada um faz o seu livro. Descobrir isto e lidar com isto foi complexo durante uns meses. Enfim, depois tudo cai numa certa normalidade também.


J.I. - Enquanto escritor, considera-se uma exceção na sua geração?

ARC - Não vou responder, porque pode ser um bocadinho presunçoso da minha parte ou acho que não sou eu que devo dar-me como exceção, não me cabe a mim responder.


J.I. - Porque é que não há mais escritores com um percurso semelhante ao seu?

ARC - Vamos lá ver uma coisa, estatisticamente, tentando responder de maneira mais analítica (ri), ser escritor não é a norma, tal como ser pintor ou muitas outras coisas dentro desse âmbito, também não o são. O que quer dizer que num país com 10 milhões de habitantes, há sempre pouca gente a escrever e dentro dessa pouca gente não há um percurso certo. Ou seja, o certo não é começar aos 9 anos e publicar aos 15 um primeiro livro e um primeiro romance aos 24. Não há caminho, na verdade. O Saramago publicou o primeiro romance aos 25, mas depois só recomeçou a escrever e a ser “Saramago” a partir dos 60. Ao mesmo tempo, de facto, é difícil num país com pouca massa crítica (poucos leitores, poucos escritores), que isso aconteça. É difícil começar a publicar cedo. Muitas vezes pode nem ser aconselhado, ou porque um um livro pode ser só um teste, um ensaio geral, há vários fatores. Uma primeira dificuldade passa logo por tentar chegar às editoras. Portanto, é uma resposta talvez um bocado complexa e que é quase uma tese de mestrado do que uma resposta a uma conversa.


J.I. - Podemos dizer em sentido figurado que a escrita corre-lhe nas veias. No entanto, desde o início que se quis distanciar do seu grau de parentesco com Eça de Queirós. Porque é que sentiu essa necessidade?

ARC - Eu gosto de falar das coisas em relação às quais tenho responsabilidade, que são minha culpa digamos. Essa, se calhar, é uma curiosidade genética. Penso que as pessoas acham, eventualmente, piada ou têm em consideração, numa análise que fazem de uma pessoa, mas que, na verdade, eu tenho tanta responsabilidade como os meus pais, avós, bisavós, por aí fora. E para além demais, no início (hoje em dia isso não me preocupa), quando saiu “O Meu Irmão” com o prémio LeYa, as coisas que falavam eram coisas que de facto eu não tinha responsabilidade, uma era eu ter 24 anos, outra era ser trineto do Eça de Queirós. Isso chateava-me um bocado, até porque quando se começa há necessidade de afirmação, de se mostrar trabalho com valor independente de qualquer coisa e eu achava que, nalguns momentos, era quase como uma etiqueta e eu não a merecia. Hoje em dia, enfim, já saiu “O Meu Irmão”, “Pão De Açúcar”, outros livros, crónicas e acho que é só uma curiosidade e que as pessoas interpretam como tal e espero que não influencie a maneira como escrevo.


J.I. - Qual é o livro que até hoje teve maior impacto na maneira como olha para a vida?

ARC - É uma resposta muito difícil, porque não há um livro só, mas eu posso dizer que o livro que, se calhar, mais me marcou em fases muito importantes na formação como pessoa e como escritor foi “A Leste do Paraíso”, do Steinbeck. Acho que o li aos 11, 12 ou 13, no máximo. É uma obra extraordinária e marcou-me muito. Não sei se tanto como a pergunta pede, mas um bocado.


J.I. - E há algumas principais referências na literatura estrangeira e/ou nacional que queira referir?

ARC - É difícil, é muito difícil. Pode ser desde uma coisa muito pequena, de uma passagem de um livro, até ao Philip Rotell, ao Fernando Pessoa, ao John Steinbeck, ao Shakespeare ou ao Proust. São coisas tão dissonantes e tão díspares. Até uma escritora completamente desconhecida que é Helen Grace Carlisle, que escreveu um romance ótimo nos anos 20. Tudo isso marca de alguma maneira, mas, ao mesmo tempo, eu não tenho autoridade para dizer o que é que me marcou ou não, porque o que interessa é o que está escrito, e o que eu escrevo pode não ter nada a ver com isso.




Entrevista por: João Múrias e Mafalda Barbosa


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